Vício é uma palavra pesada. Costuma vir carregada de julgamento, culpa, vergonha.
Na maioria das vezes, o olhar social sobre a dependência — seja química, afetiva, alimentar, ou digital — se limita à condenação da conduta ou à tentativa de correção do comportamento.
Mas na psicanálise, aprendemos a escutar o que está além do ato. O vício, para nós, não é apenas um hábito descontrolado. É um modo de o sujeito lidar com um sofrimento que não encontra outra forma de expressão.
É um sintoma — no sentido mais profundo da palavra: algo que fala por ele.
A repetição como tentativa de resposta ♻️
A pessoa que recorre a uma substância ou comportamento compulsivo não o faz porque quer apenas prazer. Muitas vezes, ela busca alívio, silêncio interno, anestesia. O uso se torna uma maneira de tamponar o vazio, a angústia, a dor que não se sabe nomear. E por isso se repete — não como escolha consciente, mas como tentativa desesperada de sobreviver ao insuportável.
É nesse ponto que a escuta psicanalítica pode fazer diferença. Em vez de rotular ou oferecer fórmulas prontas, o analista se coloca ao lado do sujeito para ajudá-lo a construir um caminho possível de reinvenção de si.
A importância de não moralizar ⚖️
O tratamento psicanalítico não trabalha com recompensas ou punições. Ele se sustenta na escuta singular do desejo, das faltas, das histórias que moldam aquela dependência. Um analista não diz o que o sujeito deve fazer, mas oferece um espaço onde ele possa dizer o que nunca conseguiu — ou não ousou — dizer.
Muitas vezes, a dependência está a serviço de calar a dor. E na análise, há um convite para que essa dor encontre palavras. Quando o sujeito começa a se escutar, a substância ou o comportamento perdem força. Porque o que era silenciado começa, pouco a pouco, a ser simbolizado.
Nem cúmplice, nem carrasco: o lugar do analista 🛋️
É fundamental compreender que o analista não ocupa o lugar de quem vai “curar” o outro. Tampouco está ali para reforçar a culpa ou punir o comportamento. Ele sustenta o lugar de escuta — firme, mas acolhedora. Um lugar onde o sujeito pode, talvez pela primeira vez, existir sem precisar se esconder atrás do vício.
Essa escuta é, muitas vezes, o primeiro espaço em que a dor pode ser colocada em palavras. O que antes era vivido no corpo, na compulsão ou na repetição, começa a se transformar em discurso, em elaboração, em possibilidade de escolha. E quando o sujeito pode, enfim, se ouvir — e ser ouvido — ele já não precisa mais se anestesiar da própria existência.
A psicanálise não promete respostas prontas. Mas oferece um encontro: com o desejo, com a verdade de cada um, com a chance de reescrever a própria história — sem precisar apagá-la.
Vera Ribeiro | Psicanalista
Especialista em saúde mental, psicanálise clínica e escuta terapêutica do sofrimento contemporâneo.